segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Utopia

Num jardim de sonhos
são nuvens as flores
rumores risonhos
especulam amores

palavras trocadas
olhares perdidos
ruas ladrilhadas
p'las mãos de meninos

que brincam por lá
e juntos vão
crescendo por lá
unidos vão
lutando por um mundo
que julgam melhor
esquecem por um segundo
todo o tipo de dor

e brincam por lá
juntos imaginam
um mundo que há
na mente dos que sonham

esse mundo novo eu quero criar
todas as crianças
lá devem passar
crescendo na esperança
de um mundo melhor
feito na crença
que em nome do amor
o mundo pode ser
um lugar melhor
onde nenhuma criança
sabe o que é a dor

porque não fazer
porque não lutar
porque só querer
só imaginar?

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Reflexo

Regresso a casa, poucos são os carros que como o meu estão na auto-estrada, o tempo está melhor, as chuvas da manhã passaram e agora o sol já espreita, tímido mas dá para aquecer um pouco.

Sinto-me calmo, bem mais que na viagem de ida, não recordo agora as razões dessa inquietude, tal é a paz interior que se apoderou de mim.

Admiro a paisagem, viajar por este país pode ser uma experiência muito agradável, vejo os montes que aos poucos vão retomando a côr, o seu verde que nunca devia ter sido substituído por um cinzento choque, violento, agressivo à vista, curva após curva um novo ponto de interesse ajuda a encurtar uma viagem que de outra forma seria aborrecida.

Ligo o rádio em busca da banda sonora perfeita, sem paciência para escutar noticiários ou conversas da treta rejeito uma e outra estação, distantes zumbidos de vozes alarmadas e alarmantes não agarram a minha atenção.

Mesmo sem olhar para o visor que indica a frequência, o tempo que demoro à procura de uma música diz-me que já terei dado a volta, estranhamente tento recordar alguma melodia e não consigo, fico com a sensação que não pode ser correcta obviamente, de só ter ouvido pessoas a falar e nem uma música, continuo a procurar uma estação que satisfaça a minha sede por uma sonoridade que já algo impaciente ambiciono e nada, conversa, pura, simples e interminável conversa.

Contrariado escuto uma estação que em nada será diferente da anterior e pouco a separará do conteúdo da próxima, chegasse eu a mudar de novo o posto.

Ao atentar no que as vozes dizem, sou invadido por uma constrangedora sensação de 'Déjà vu', algo que não tem razão de ser já que a notícia que é transmitida fala de algo nunca visto por este país, de um evento de tal forma brutal que a minha atenção é finalmente presa pelas vozes e deixa de tentar encontrar a música perfeita.

Como alguém que aos poucos vai saindo de um estado de choque ao ser confrontado com uma situação trágica que lhe tenha ocorrido, vou identificando de uma forma horrivelmente precisa, e conseguindo imaginar ao pormenor o que é falado nas notícias. Dão conta de um homicídio múltiplo num restaurante, numa simples cidade, neste simples país, não sobrou ninguém para contar a história e o assassino ou assassinos, o que se apresenta mais provável tal é a quantidade de vítimas, está a monte, e ao que o jornalista pôde apurar a polícia não tem qualquer pista concreta a que se agarrar. Sinto um frio na barriga, talvez pela dimensão da tragédia, uma náusea invade-me enquanto quase posso sentir o cheiro a sangue que certamente terá ficado no local do crime.

Já não aprecio a paisagem, os rios por onde passo assustam-me, não sinto segurança nos braços e aperto o volante com mais força, uma tragédia assim não deixa ninguém indiferente e só estamos habituados a que aconteça lá fora, não assim, aqui no nosso país.

Penso naquelas pessoas e que estariam à hora errada no lugar mais errado possível, chavão que se aplica na perfeição, lembro-me da minha própria refeição e sinto um alívio egoísta por não ter sido comigo. Imagens difusas formam-se na minha cabeça, a noção que aos poucos me liberto de uma letargia não me abandona, o carro quase segue em modo automático enquanto só vejo o meu próprio almoço.

Entro num restaurante italiano, não por algum apetite ou desejo concreto mas por ser o primeiro que se apresenta no meu caminho, estando numa cidade desconhecida, não vou arriscar a procurar outra opção.

É um local de uma simplicidade que salta à vista, as (poucas) mesas dispostas de forma a rentabilizar ao máximo o espaço que não é muito, um grupo de seis pessoas conversa animadamente, um empregado, aparentemente o único indica-me uma mesa num canto algo escondido, apenas ao dirigir-me para o meu lugar vejo um casal que se prepara para almoçar.

A sala é pequena mas torna-se agradável, a decoração que à primeira vista parece básica está muito bem conseguida, alguns quadros, todos iguais, com uma moldura desenhada à volta de um fundo negro, vazio, como se a convidar que cada cliente imagine o que devia estar em cada quadro.

Enquanto tento apreciar os pormenores deliciosos do restaurante, uma voz corta o silêncio que parece reinar de forma a manter uma atmosfera própícia, ergo os olhos para perceber que vem de uma mulher na mesa de seis, agora percebo que a animação da mesa é na íntegra da responsabilidade da referida senhora. Tento abstrair-me e de novo contemplar a decoração, e depois a refeição em si, mas ao fundo a figura parece crescer e abafar tudo o resto.
Penso se as restantes pessoas estarão a fazer um frete, ou se gostam dela assim... Sinto uma dor de cabeça forte, e uma certa raiva, mas volto-me para o prato e esqueço aquela voz que corta o silêncio de forma cruel.
Estou já no fim da refeição, quando do outro lado da sala vejo a irritante figura soltar um grito, seguido de um som forte e seco que de início não identifico, uma nova personagem está em cena apontando um objecto que preso à sua mão vai soltando aqueles sons secos e fortes que finalmente reconheço como tiros, uma pessoa, duas pesssoas estão caídas na mesa de seis, a primeira com um tiro na testa, a segunda de costas nem se deve ter percebido da execução que foi vítima. Tudo isto parece tirado de um filme, corre devagar, quase oiço uma música, uma perfeita banda sonora, apenas cortada pelos gritos lancinantes da irritante senhora, cujo autor dos disparos cruelmente poupa, três, quatro pessoas caiem a caminho da porta tentando salvar a pele, cinco, nova execução à mesa de seis, a música torna-se mais forte, corre mais rápida, o cozinheiro, afinal havia mais um empregado surge de cutelo em punho, querendo parar aquele louco, seis pessoas tombadas quando no chão jaz uma bata branca ensanguentada pelos três tiros que o cozinheiro encaixou.
Três pessoas estão de pé, vejo tudo isto com um distanciamento que não consigo perceber, estou ali, na mesma sala, vejo tudo o que está a acontecer como se de um espectador em posição privilegiado se tratasse, o que empunha a arma vira-se e o casal que acabava a refeição aquando da chacina treme enquanto o terrível assassino esgota as balas primeiro nela e depois nele até o último suspiro, a pessoa que outrora enchia a sala com as suas tretas está agora encostada à parede, tremendo e soltando uns grunhidos imperceptíveis, a arma cai e penso, safou-se, como é possível interrogo-me, o que empunhava a arma sorri perante o desespero da mulher, e tira o cutelo das outrora hábeis mãos do agora inerte cozinheiro, e percebo então que a sorte dela não era melhor, antes pelo contrário, com uma atenção mórbida observo o peito da mulher ser rasgado com uma força e uma rapidez inacreditáveis, para depois o cutelo repousar definitivamente na agora rachada testa da mulher.
O assassino endireita-se, faz um gesto com o pescoço como se esperasse estalar alguma coisa, olha as próprias mãos ensanguentadas por alguns segundos e dirige-se ao lavatório, abre a torneira e vê o seu sangue escorrer junto com a água, com as duas mãos em concha junta alguma água que usa para banhar a face, uma, duas, três vezes, sorri, de novo se endireita e encara o espelho pela primeira vez e ao encontrar o próprio olhar nesse reflexo do espelho vejo o que fiz e páro de sorrir.